A curiosidade inventou a humanidade

Por Maíra Padgurschi & Carlos Joly

O necessário diálogo entre ciência, tecnologia e ambiente tem carecido de interlocutores capazes de fazer com que essas áreas interajam e façam emergir novos pontos de contato com características importantes que individualmente não existiam. Segundo uma de suas definições, ciência é o processo racional usado pelo homem para se relacionar com a natureza e assim obter resultados que lhe sejam úteis. Não por acaso, o epíteto específico da nossa espécie é sapiens, palavra latina que significa sabedoria. Essa habilidade em observar e compreender a natureza, somada à estabilidade climática do Holoceno, foram fundamentais para e evolução da história humana e o domínio da nossa espécie sobre o globo. O início do Holoceno, denominação dada à época geológica atual que se iniciou há 10 – 11 mil anos, tem como marco a revolução neolítica ou agrícola. Essa fase compreende o período no qual o Homo sapiens deixou de ser caçador‑coletor, com hábitos nômades, para se fixar em locais climática e ambientalmente favoráveis. Esse período envolve o conhecimento, a compreensão das características e a domesticação de espécies animais e vegetais importantes até hoje para as populações humanas (o feijão e a abóbora, por exemplo, foram domesticados entre 5 e 8 mil atrás anos na região que hoje compreende o México).

Como mostram os indícios arqueológicos, foi um processo dinâmico, de tentativas e erros, observações e experimentações, extinção e reintrodução de técnicas e culturas. E, como parte essencial desse processo, houve o desenvolvimento de ferramentas e tecnologias para manuseio das espécies, o que, para o biólogo Edward O. Wilson, significou a grande Explosão Criativa da humanidade. Com isso, e tomando por base o conhecimento da ecologia de populações, o aumento da variedade de alimento com menos esforço significa mais energia disponível, melhor fitness, mais prole e, consequentemente, aumento da população humana, levando ao surgimento de cidades e ao avanço da escrita e da civilização.

Podemos dizer então que a ciência é tanto um conhecimento objetivo, quanto uma construção humana. Da mesma forma, a tecnologia também é uma construção humana, e ambos, ciência e tecnologia, operam concomitantemente em uma interação dinâmica para a compreensão dos padrões e domínio dos  fenômenos do ambiente. Mas, se tanto a ciência quanto a tecnologia são características da evolução humana e essenciais para nosso entendimento sobre como funciona o planeta, então por que a ciência tem sido relegada a um papel de coadjuvante na sociedade contemporânea?

A curiosidade, inerente ao ser humano, é evidente desde a infância, pois crianças tudo observam e querem saber. Entretanto, muitas vezes por necessidade ou como consequência da compartimentação do conhecimento em disciplinas, nosso despertar pela vida acaba ficando em segundo plano, adormecendo por fim. O conhecimento perde sua capacidade essencial de reflexão. Soma-se aqui a ciência imediatista que promete a cura de todos os males que arremetem a humanidade. Acontece que, ao longo da história, erros e acertos da ciência caminham muito próximos e, assim, a ciência a curto prazo dificilmente cumpre com tais promessas, caindo em descrédito. A ciência é dinâmica. As generalizações nem sempre são aplicáveis a todos os sistemas e, se são em determinado momento, podem não ser em outro. A ciência precisa continuamente ser confrontada, revista, estudada, avaliada, repensada e então novas aplicações surgem, velhas abordagens retornam, permitindo o avanço do conhecimento. Tal qual na revolução neolítica. E isso leva tempo.

Em 2016, o químico James Stoddart (1942 – ) ganhou o Nobel de Química graças aos seus 30 anos de pesquisa. O feito? Um estudo pioneiro que contribuiu para a descoberta das máquinas moleculares que, dentre dezenas de outras aplicações, poderão revolucionar a mineração tornando a exploração de ouro mais limpa. Outro exemplo é o laser: sabe a luz vermelha do leitor de código de barras? ou a tecnologia LiDAR (Light Detection and Ranging) que utiliza dados gerados por instrumentos para fins florestais? Pois é, quando essa tecnologia hoje onipresente foi criada, em 1960, seu próprio desenvolvedor a teria definido como “uma solução à procura de um problema”. Há também o caso do geoquímico Clair Patterson (1922 – 1995), que na busca por descobrir a idade geológica da terra acabou identificando a presença de chumbo no ar em decorrência de seu uso como componente da gasolina. A inconsistência dos resultados de seus experimentos o levou ao desenvolvimento da sala limpa (utilizada até hoje em laboratórios e hospitais) e à descoberta da contaminação por chumbo na atmosfera.

Apesar do esforço, a comunidade científica ainda não convenceu a sociedade de que não há desenvolvimento sem investimentos em ciência e tecnologia. Uma forma de reverter a situação é nos voltarmos às origens reunindo os compartimentos e integrando o conhecimento contido em cada área como uma forma de compreender questões complexas, como se propõe com a interação Ciência, Tecnologia e Ambiente. O entendimento de que as soluções para desafios complexos requerem abordagens transdisciplinares é o cerne de muitas iniciativas de conservação bem sucedidas.

É nesse cenário que atuam as Plataformas Brasileira e Internacional de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES e IPBES, respectivamente). Os estudos dos serviços ecossistêmicos e do bem-estar humano são experimentos complexos e que requerem inovação contínua, aprendizado e interdisciplinaridade. Essa é a base dos Diagnósticos das Plataformas: avaliação interdisciplinar crítica da literatura peer-reviewed e cinza (que inclui teses, relatórios de governos, de ONGs e empresas) com apoio do conhecimento tradicional e indígena. Com a missão de ser uma ponte entre ciência e política para conservação e uso sustentável da biodiversidade e serviços ecossistêmicos para o bem-estar humano, a BPBES se inspirou na abordagem e conceitos da IPBES, mas tem suas particularidades adaptadas ao contexto nacional. Produziu, por exemplo, um documento para promover a discussão com diferentes setores da sociedade. Essas contribuições serão incorporadas nos Diagnósticos Nacionais por intermédio de reuniões focais com cada grupo com base na percepção desse documento. Com isso, nós acreditamos que as Plataformas possam ser as interlocutoras nesse processo interativo. Nós esperamos que a iniciativa da BPBES inspire alunos e cientistas a prosseguirem com suas pesquisas, sejam elas de médio ou longo prazos, porque direta ou indiretamente, com certeza serão utilizadas para a sustentabilidade do nosso país, e podem se constituir em um exemplo para o mundo.

(Editorial publicado originalmente na revista Ciência, Tecnologia & Ambiente)