Elton Alisson | Agência FAPESP – Apesar de nos últimos anos ter surgido muita ciência e aumentado a conscientização sobre a necessidade de conter a perda de biodiversidade e a degradação da natureza, a ação necessária para isso ainda é insuficiente.

A avaliação é do cientista africano David Obura, fundador e diretor da Cordio East Africa – uma organização dedicada à sustentabilidade dos recifes de corais e sistemas marinhos no oceano Índico Ocidental – e chairman da Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES). Criada em 2012 por governos de 94 países, incluindo o Brasil, tem a função de sistematizar o conhecimento científico acumulado sobre biodiversidade para dar subsídios a decisões políticas em âmbito internacional – trabalho semelhante ao que tem sido feito há mais de 30 anos pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). Atualmente a entidade conta com 150 países-membros.

Em passagem pelo Brasil na semana passada para proferir uma conferência na FAPESP, Obura concedeu uma entrevista à Agência FAPESP em que fala, entre outros assuntos, sobre a necessidade de promover a integração do papel do oceano e da biodiversidade na agenda climática, bem como os avanços e retrocessos nesse aspecto.

Agência FAPESP – A IPBES tem chamado a atenção para a necessidade de integrar o oceano, a biodiversidade e o clima nas discussões e na busca de soluções para as crises ambientais porque estão intimamente interligados. Por que a abordagem integrada desses temas é ainda mais necessária na atualidade?
David Obura – Um dos motivos pelos quais vim para a IPBES e aceitei exercer essa função – de chairman – é porque acredito que a estrutura da plataforma é realmente boa para ajudar a integrar essas agendas. O próprio nome da IPBES reflete isso: é uma plataforma intergovernamental sobre biodiversidade e serviços ecossistêmicos. Então, não se trata apenas de biodiversidade e proteção da natureza, mas de como nos beneficiamos disso. Por isso, é importante abordar todos esses temas como uma agenda única, e não tratar o clima e a agricultura, por exemplo, como elementos separados. É preciso realmente entender como alguns ativos, como a água, por exemplo, dependem da natureza e que, embora sejam gratuitos, se os usarmos em excesso e não os tivermos mais deixaremos de nos beneficiar deles. Realmente deveríamos pensar sobre o custo e a capacidade da natureza de fornecer as coisas que queremos e que usamos, das quais dependemos. Por isso, não é possível separar essas agendas. O que se está fazendo em relação ao clima afeta o que acontece com os alimentos, tem efeitos na produção e na conservação da natureza também. É preciso entender essas interações.

Agência FAPESP – Em sua opinião, por que essas agendas ainda continuam sendo abordadas de forma separada, em fóruns específicos?
Obura – Em nível mais local, onde as pessoas lidam diretamente com a natureza, elas entendem como essas agendas estão conectadas. Um pequeno agricultor, por exemplo, sabe que se desmatar uma encosta para fazer uma plantação sofrerá com a erosão do solo. Ou um piscicultor sabe que se poluir um determinado lago sua pesca será impactada e a qualidade dos pescados que comercializa será ruim. Mas, em um nível mais macro, nossa economia é muito capitalista e orientada para o lucro, que visa maximizar o que se produz. Mas ao maximizar a produção de alimentos, por exemplo, outras partes da natureza são prejudicadas. Então, essa economia muito orientada para o lucro em que vivemos contribui para separar essas agendas, porque sempre queremos maximizar uma coisa e isso significa que você tem de deixar de lado todo o resto.

Agência FAPESP – Quais ações têm sido executadas no âmbito da IPBES nos últimos anos para promover a integração dessas agendas?
Obura – Nossa premissa na IPBES é que a ciência deve ser útil para formuladores de políticas, governos locais e nacionais tomarem decisões e utilizarem os dados que produzimos na formulação de políticas ou de leis, por exemplo. Acabei de participar de uma reunião com o Bráulio Dias [diretor do departamento de conservação e uso sustentável da biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente do Brasil] e ele comentou sobre uma nova lei que entrou em vigor no ano passado no Brasil por causa dos incêndios florestais que têm ocorrido aqui, a exemplo de outros lugares no mundo. Com as mudanças climáticas causadas pelo aquecimento global, as savanas e as florestas estão secas e estamos tendo cada vez mais incêndios. Por isso têm sido editadas novas leis voltadas a analisar técnicas de prevenção de incêndios muito mais abrangentes e integradas. Então, vemos novas decisões legislativas que usam o que estamos aprendendo com os ambientes e isso é um indicador de avaliação do sucesso que temos obtido no âmbito da IPBES. Queremos que essas pessoas não apenas acessem nossos relatórios científicos, mas que esses dados sejam usados na vida real por tomadores de decisão.

Agência FAPESP – Quais são suas metas à frente da IPBES?
Obura – Um dos meus objetivos é promover o aumento da compreensão da IPBES e do papel da plataforma, cujo nome é muito longo e difícil de pronunciar. Algumas pessoas dizem que é o Painel de Biodiversidade da ONU [Organização das Nações Unidas] e coisas do tipo, e está tudo bem. Mas não se trata apenas de biodiversidade. Meu desejo é que as pessoas entendam que, na realidade, se trata de como a natureza apoia as pessoas ou como a natureza apoia nossas economias e nossas sociedades. Então, se você prejudicar demais a natureza, como estamos fazendo agora, não haverá recursos suficientes para atender às nossas necessidades. No passado, quando a economia era menor e havia poucas pessoas, havia muita natureza. Se as pessoas degradassem um lugar poderiam se mudar para outro e esse local poderia se regenerar ou se recuperar. Mas agora as coisas mudaram. É preciso que as pessoas entendam como a natureza sustenta a sociedade moderna, o mundo em que estamos agora. Fazer com que as pessoas entendam essa mensagem é um dos meus objetivos principais. Um ponto positivo que temos constatado é que as avaliações que temos realizado nos últimos anos têm sido utilizadas por diferentes atores sociais porque são relevantes para os setores pelos quais são responsáveis. Eles estão entendendo quanto seus setores dependem da natureza e do equilíbrio dos ecossistemas.

Agência FAPESP – Como o senhor avalia a participação da comunidade científica brasileira na IPBES?
Obura – Tem sido muito boa, forte e poderosa. Vemos que há um enorme interesse da comunidade científica no Brasil em relação aos assuntos tratados no âmbito da IPBES. O país tem instituições muito boas, de diversos tipos, que interagem entre si, apoiam os cientistas e seus programas de pesquisa.

Agência FAPESP – E como tem sido a participação dos Estados Unidos na IPBES?
Obura – Os Estados Unidos têm participado das discussões na IPBES, mas se mantiveram fora da Convenção sobre Diversidade Biológica [tratado da ONU sobre proteção e uso da biodiversidade], não são signatários dela. Eles são membros, a comunidade científica também tem sido muito ativa na IPBES e até mesmo a representação governamental tem sido muito favorável.

Agência FAPESP – Há o risco de os Estados Unidos saírem da IPBES, a exemplo do que tem acontecido em outros fóruns internacionais, como o veto do governo americano à participação de cientistas do país no IPCC, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas?
Obura – O governo dos Estados Unidos não nomeou nenhum cientista americano para o IPCC nesta rodada, mas as instituições americanas se uniram e gerenciaram o processo para isso. Em relação à IPBES, até agora não tivemos sinalização nesse sentido.

Agência FAPESP – Quais os impactos do declínio dos investimentos dos Estados Unidos em termos da conservação da biodiversidade?
Obura – O governo norte-americano atual está promovendo exatamente o tipo de abordagem de maximização do lucro que está destruindo ou minando os sistemas naturais. Eles estão caminhando na direção oposta de todas as recomendações feitas pelo Relatório de Avaliação sobre as Interligações entre Biodiversidade, Água, Alimentação e Saúde, que produzimos e lançamos em dezembro de 2024 [conhecido como Relatório Nexus]. Acho que estão se consolidando práticas ruins e prejudiciais, que nos levaram aonde estamos agora. Eles estão retrocedendo 30 ou 40 anos em termos de biodiversidade, políticas climáticas e conscientização pública. Isso é um dano. Mas a questão é que, embora o governo e as políticas estivessem se desenvolvendo muito melhor antes, a ação nos EUA ainda era muito voltada para o capitalismo, o crescimento e a extração descontrolada de recursos naturais. Portanto, as práticas não mudaram tanto e a economia global ainda insiste no crescimento como objetivo principal. Talvez haja muita ciência e conscientização surgindo, mas ainda não há ação suficiente e isso é um sinal real de que retrocederemos muitos anos nessa agenda.

Agência FAPESP – Quais suas expectativas em relação à COP30 [30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, que acontecerá em novembro no Brasil] no que concerne à integração do papel do oceano e da biodiversidade na agenda climática?
Obura – Analisando quanto o clima e a biodiversidade estão relacionados, esperamos que a COP30 represente uma oportunidade para que a agenda do oceano e da biodiversidade entre na agenda climática como deveria. Isso ainda levará muitos anos, mas acho que o mais importante é avançar em ações em andamento relacionadas à mitigação, adaptação, perdas e danos, bem como o financiamento necessário em todos os países. O Relatório Nexus, em particular, oferece algumas soluções que os países poderiam usar imediatamente e que poderiam ser incluídas em seus planos nacionais de adaptação e isso também se aplica à mitigação. Essas soluções poderiam se conectar às estratégias e planos de ação da Convenção sobre Biodiversidade Biológica. Espero que possamos ver um movimento e uma ação muito mais rápidos, porque as pessoas estão enfrentando crises climáticas, hídricas e outros problemas que estão afetando suas vidas.

Agência FAPESP – Na condição de um cientista africano ocupando um cargo de liderança na IPBES, como o senhor avalia a importância de aumentar a representatividade de países do Sul Global em fóruns científicos internacionais?
Obura – Estou gostando muito de estar nessa função como cientista africano porque, muitas vezes, nossa voz é muito menos ouvida tanto nas comunidades científicas, para ter acesso a publicações e periódicos de ponta, por exemplo, como na disseminação de nossas pesquisas e assim por diante. Eu trabalho com recifes de corais, que vivenciam os impactos das mudanças climáticas muito diretamente. Mas também lidamos com a dependência humana e a pesca em pequena escala, além de como as comunidades, muitas vezes em contextos de alta pobreza e em países de baixa renda, dependem dos corais. Portanto, acho que posso contribuir muito com essa minha experiência científica como ecologista e também como cientista africano para melhorar a forma de comunicar nossas descobertas e mostrar por que elas são tão importantes e relevantes em níveis locais para as pessoas, especialmente aquelas de baixa renda. Acho que isso pode ter algum impacto em termos de tornar a mensagem muito mais direta e acessível para as pessoas, porque a ciência é muito complexa. Temos uma estrutura conceitual difícil de comunicar, mas o significado da ciência é muito direto e relevante para as pessoas em todos os contextos ao redor do mundo. Então, espero que isso tenha algum impacto e me esforço muito para estar em lugares onde eu possa comunicar nossas descobertas de forma indireta.

Agência FAPESP – O senhor mantém colaboração com pesquisadores brasileiros?
Obura – Como cientista atuante em recuperação de corais, eu trabalho no Quênia, África Oriental, e tenho constatado que os corais realmente funcionam em sistemas regionais. Tivemos muitas colaborações em nossa região, que abrange dez países no oceano Índico Ocidental, como chamamos, incluindo Moçambique, que é país de língua portuguesa. E há algum tempo tivemos algumas conexões com cientistas brasileiros porque os recifes de corais também são muito consistentes ao redor do mundo. Como um cientista africano, avalio que a colaboração com cientistas brasileiros e de outras nações do Sul Global – a chamada cooperação Sul-Sul – é muito útil para nós. Temos muito mais em comum do que se estivéssemos colaborando com a Europa, a América do Norte e a Austrália em corais, por exemplo, e essa colaboração está se expandindo muito. Em relação aos recifes de corais e sistemas oceânicos, é claro que, até certo ponto, faz muito mais sentido para o Brasil cooperar com países da África Ocidental.